A Virgem Maria e a Igreja

Padre Paulo Ricardo

Eu gostaria de, nesta manhã, falar sobre uma realidade tão linda que recebemos do ensinamento da Igreja: o relacionamento de Maria com a Igreja. O Concílio Vaticano II (CVII) quis proclamar que Maria é a Mãe da Igreja. Mas o que está por trás dessa verdade proclamada pelo concílio?

O Papa Paulo VI, há 50 anos, ao promulgar a Lumen Gentium pôs fim a um debate. Quero que você entenda uma coisa: Maria é, sem dúvida nenhuma, discípula de Jesus, membro da Igreja, como nós o somos. Ela é como todos os santos, como todos nós [discípulos de Jesus]. E, ao mesmo tempo em que Nossa Senhora é membro da Igreja, misteriosamente, ela também é a Mãe da Igreja. Como é possível ser membro e Mãe da Igreja?

Esta verdade apresentada pelo CVII é muito importante para nós, pois a Santíssima Virgem Maria tem uma função especial dentro da Igreja.

Vamos meditar um pouco sobre essa realidade de Maria ser Mãe da Igreja. A primeira coisa a ser refletida é que o título mais importante de Nossa Senhora é ser Mãe de Deus. Maria é Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo. E é disso que deriva todo o mistério de Maria. Ela foi escolhida por Deus para ser o caminho por meio do qual a salvação entraria neste mundo. Porque do mesmo jeito que entrou a perdição no mundo, assim também tinha que entrar a salvação. É um paralelo a ser feito. A desgraça, a depreciação e o pecado entraram no mundo e, então, Deus pensou que, da mesma maneira, deveria entrar a graça, a salvação e o amor.

Façamos um paralelo. Um dia havia uma mulher com as seguintes características: ela era uma mulher, era virgem, imaculada, estava noiva de um homem e recebeu a visita de um anjo. Qual é o nome dessa mulher? O nome dessa mulher é Eva. É verdade. Eva era mulher, virgem, imaculada (porque antes do pecado original ela era imaculada), ela estava noiva de Adão (pois não tinha se casado ainda) e recebeu a visita de um anjo, cujo nome é Lúcifer, satanás, a antiga serpente, o dragão. E assim, ao receber a visita desse anjo mau, ela desobedeceu a Deus. E, ao desobedecer ao Senhor, entrou a perdição neste mundo. Podemos dizer que Eva é a mãe de todos os homens no sentido biológico. Biologicamente nascemos de Eva e com essa herança maldita, que é o pecado original.

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Você sabe como se transmite o pecado original? Ele é transmitido por intermédio da pobreza. Imagine se eu ganho na loteria e fico rico, consequentemente os meus filhos ficam ricos, pois vão receber essa riqueza por herança. E então eu faço um investimento errado, perco todo o meu dinheiro e fico pobre. É claro que meus filhos também ficarão pobres. Adão e Eva eram ricos da graça de Deus, mas, com o pecado original, ficaram pobres e, logo, os seus herdeiros ficaram pobres, miseráveis. Por isso nós nascemos dessa forma, miseráveis, na pobreza espiritual.

No entanto, Deus não quer que Seus filhos fiquem nessa pobreza. E então muitos séculos depois a cena se repete. Uma mulher: virgem, imaculada, noiva de um homem (que agora se chama José), visitada por um anjo (de nome Gabriel), só que agora o nome da virgem é Maria. Veja como Deus resolve o problema criado pelo demônio lá atrás. Assim como Eva foi a porta pela qual o pecado entrou no mundo, Maria é a porta através da qual entrou a salvação, a graça e o amor, em cujo ventre Deus se fez homem.

Vamos refletir sobre essa cena na qual Maria se torna a Mãe de Deus e quando ela recebe o anúncio do anjo. Você pode olhar em toda a Bíblia, do Gênesis ao Apocalipse, e não vai encontrar nenhuma vez um anjo elogiando um ser humano. Todas as vezes em que um anjo se aproxima de um ser humano ele diz: “Não tenhas medo”. Na nossa mentalidade popular, os anjos são uns bebezinhos gorduchos, com cabelinho encaracolado. Contudo, esses seres celestes não são assim. Os anjos na Bíblia têm uma graça tremenda. Todas as vezes em que eles aparecem precisam dizer: “Calma! Não tenhas medo!”, porque, quando isso acontece, somos tomados de tremor e de medo interior diante da grandeza, da santidade, da glória e do poder deles. Porque os anjos são muito mais poderosos do que nós, seres humanos.

Nenhuma única vez um anjo aparece para um ser humano e o elogia na Bíblia. Só existe uma exceção, que é quando o anjo Gabriel aparece diante de Maria. A saudação de Gabriel, dirigida a Virgem Maria, é única na Bíblia: “Salve Maria, cheia de graça” em grego: Chaire Kecharitomene. “Cheire” é a saudação que se fazia entre os gregos. “Chaire” tem a ver com graça.

A palavra “graça” tem três significados que usamos no dia a dia. O primeiro é um significado de alegria. Quando dizemos: “Olha que engraçado!”. Ou: “Isso tem graça” ou ainda: “Não seja sem graça!”. “Graça” aqui quer dizer alegria. Por isso encontramos em algumas Bíblias a expressão: “Alegra-te, Maria”. Outro significado de “graça” é beleza: “Olha que gracinha!” quando você vê uma criança, logo diz: “Que engraçadinha! Que fofura!”. Você diz que uma pessoa é graciosa por ela ser bela. O terceiro significado é a gratuidade, o dom: “Isso aqui é de graça, é um dom, está sendo dado e você não precisa pagar nada por ele”.

E quando repetimos tantas e tantas vezes no terço a expressão “Ave Maria” (“Ave” vem do latim que é uma tradução da palavra “Chaire”, que quer dizer “alegre, bela” e também que a graça de Deus esteja contigo. Mas o anjo não só diz “Chaire“, ele completa a expressão com “Kecharitomene, que traduzido fica: “Ave, ó cheia de graça.”

Temos que entender a missão do anjo Gabriel, que saiu de junto de Deus para levar uma mensagem para uma Mulher em Nazaré. Quando ele a vê fica encantado por ver, no coração de Nossa Senhora, um amor por Deus maior do que o dele. Quando os anjos olham nosso coração, eles veem nossa pobreza (e a maior delas é a falta de amor por Deus). Eles veem que nós somos maltrapilhos, mendigos, pobres e miseráveis do amor de Deus. Nós amamos muito pouco a Deus. Na hierarquia do amor, os anjos estão lá em cima, e nós somos uns pobrezinhos. Então quando Deus manda Gabriel para visitar os pobres, miseráveis, ele acha que é uma mulher miserável do amor de Deus que vai encontrar. Quando ele chega e encontra Nossa Senhora, fica espantado de ver em uma mulher um amor maior maior do que o dele por Deus. Maria, na hierarquia do amor, estava muito acima dos anjos. Ela já era espetacular.

São Luis Maria Montfort diz que os anjos, quando viam Maria, diziam entre si: “Quem é esta mulher?” pois o mistério de Maria era inalcançável por eles.

A segunda coisa que devemos notar no momento maravilhoso, quando Maria se tornou a Mãe de Deus, é o seguinte: Deus podia fazer com que Maria ficasse grávida de Jesus sem a a permissão dela, assim como fez com Zacarias na gravidez de Isabel, Ele só comunica, dá a notícia para o marido de Isabel. Contudo, quando o anjo vai até a Virgem Maria ele diz assim: “Salve, cheia de graça, o Senhor está contigo. Não tenhas medo, Maria”. Aí ele volta ao enredo normal. Depois do seu espanto, ele se recompõe e fala: “Não tenhas medo”. Após o susto que ele levou, ele volta ao script da fala com os seres humanos. E continua: “Encontrastes graça diante de Deus”. Isso quer dizer que Deus se apaixonou por ela. É bela, ela é a feliz Maria, a bem-aventurada. “Conceberás e darás à luz um filho” e Maria pergunta como isso aconteceria e o anjo lhe diz que o Espírito Santo viria sobre ela e ela então responde: “Eis aqui a serva, a escrava do Senhor.”

É interessante notarmos que a nossas Bíblias não usam mais a palavra “escrava”. Isso porque os tradutores têm medo de que as pessoas se escandalizem com essa palavra. Mas para entendermos o que significa a palavra “escrava” na Bíblia, precisamos entender o significado dela naquela época. O escravo é alguém que está sob a proteção de outra pessoa. Nas sociedades pagãs era alguém que podia até ser morto pelo seu patrão. Mas na sociedade judaica, na qual Maria vivia, os senhores não podiam ser cruéis com seus escravos. Eles tinham que cuidar dos seus escravos. Não estou defendendo a escravidão, estou tentando ajudá-lo a entender aquela sociedade de dois anos atrás. Naquela época, o escravo estava em um situação vantajosa em relação a um pobre, um miserável, um mendigo.

Vamos pegar o exemplo de São José, que era marceneiro. Se ele sofresse um acidente de trabalho e ficasse incapaz de trabalhar, o que ele poderia fazer? Apenas ficar na calçada mendigando para não morrer de fome. Naquela época não havia seguro-desemprego, aposentadoria, nada disso. Um homem livre que sofresse um acidente estava perdido. Só lhe restaria mendigar, pois ele não tinha amparo algum. Já o escravo, se sofresse um acidente, seu senhor iria cuidar dele pelo resto de sua vida. Por isso, muitas pessoas pensavam que ser escravo de um bom senhor era melhor do que ser livre.

No entanto, na palavra “escrava”, na fala de Maria, existia um vínculo muito maior, um vínculo afetivo com o seu Senhor ao dizer: “Eis aqui a escrava do Senhor”.

Mas o que é maravilhoso aqui é que o nosso Deus pediu o consentimento de Maria [para operar esse milagre]. Ele não qui usá-la como um instrumento inanimado, Deus quis o “sim”, o amor e o consentimento de Maria. Meus irmãos, Maria tornou-se, naquele momento, não somente uma escrava, mas tornou-se ministra de nossa salvação. E qual a diferença entre instrumento e ministério? Sao Tomás de Aquino nos ensina. Por exemplo: tenho aqui o meu celular, um instrumento para fazer ligação, mandar mensagens, etc. Quando o objeto em questão é inerte, inanimado, não tem vida, não tem inteligência, não tem liberdade, é simplesmente chamado de instrumento. Quando esse objeto é livre, consciente, é uma pessoa, recebe o nome de ministro. O ministro, então, é uma pessoa consciente e livre para que Deus possa agir. Maria, ao dizer “sim” ao Senhor, se tornou instrumento de nossa salvação.

É por isso que a Lumen Gentium diz, com toda a clareza do mundo, que Nossa Senhora continua, ainda hoje, o seu papel de gerar as pessoas na graça de Deus. Quando falamos de Eva, dissemos que ela era mãe biológica de todos nós. Eva é a mãe de todos os homens de acordo com a biologia. Maria tornou-se a Mãe de todos nós na graça de Deus. Já que em Eva caímos em desgraça, Deus, por ver que esta fora a porta da perdição, quis que Maria fosse a porta da salvação. É por isso que precisamos construir um relacionamento com Maria para que possamos ser gerados na graça por ela.

A Igreja é o corpo místico de Cristo. E quem foi que gerou o corpo biológico de Cristo neste mundo? Foi Maria. Quando Maria disse “sim” para o anjo, milagrosamente, Jesus surgiu no ventre dela. Mas depois, aquele embrião precisava ser gerado. E aqui está a beleza: nós precisamos ser gerados. Jesus biologicamente foi gerado por Maria. Mas Maria continua essa missão de nos gerar. O Corpo místico de Cristo, que é a Igreja, continua sendo gerado por Maria. Quando você foi batizado, Maria estava lá gerando você para ser um membro do Corpo místico de Cristo. Mesmo um evangélico, quando é batizado – e esse batismo é válido – está lá aquela que gerou o Corpo de Cristo. Ela continua seu papel de geração do Corpo de Cristo em nós. E esta é a maravilha que está na Lumen Gentium, no Catecismo da Igreja Católica e em todos os documento pontifícios que falam de Maria.

Papa Francisco, na Evangelii Gaudium, ao falar de Nossa Senhora, afirmando que ela é a estrela da nova evangelização, recorda que Maria desempenha um papel na geração desse Corpo de Cristo como a grande missionária evangelizadora. Ele diz, com muita clareza, que Maria desempenha esse papel de Mãe daqueles que creem e que vão sendo gerados na fé. Quando você prega e converte uma pessoa para a fé, mesmo que você não esteja falando de Maria, ela esta lá, pois se a fé esta sendo gerada, ela esta lá. São Paulo, ao falar aos coríntios, em sua primeira carta, diz que eles podem ter muitos pedagogos, mas foi ele quem os gerou na fé em Deus. Se São Paulo pôde fazer isso com os coríntios, Maria pode fazer com o mundo todo.

Qual é o relacionamento de Maria com a Igreja? Ela é um instrumento de Deus, uma ministra de Deus. Ela tem um ministério, uma função, um papel que é continuar gerando os filhos de Deus. Se você tem pessoas na sua família que precisam ser geradas na fé, entregue-as aos braços maternos de Maria. Ela não rejeita os seus filhos, mesmo que eles a rejeitem.

Papa Francisco cita a passagem do Apocalipse 12, quando Jesus é arrebatado aos céus, e recorda que Maria vai para o deserto com o restante dos seus filhos para continuar a luta. Que luta é essa? Poderíamos falar que essa luta seria como as dores de parto, pois a evangelização é um trabalho do parto. E então podemos usar a expressão do Documento de Aparecida de sermos discípulos-missionários.

O verdadeiro discípulo de Jesus é um filho de Maria, pois o discípulo é aquele que foi gerado na fé, e somente quem foi gerado no útero de Maria é capaz de ser gerado na fé. O discípulo é o filho de Maria e o missionário é aquele que vai ajudar o outro a ser gerado também. O missionário é como um parteiro. Maria é aquela que gera e dá à luz, e nós somos os parteiros de Deus quando ajudamos nesse nascimento na fé. Maria é o ventre onde tudo acontece, e nós, missionários, somos os parteiros.


Transcrição e adaptação: Guilherme Zapparoli

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