É preciso entregar quem você ama para Deus

Padre Rafael Ligeiro

Padre Rafael. Foto: Regiane Calixto/cancaonova.com

Padre Rafael Ligeiro. Foto: Regiane Calixto/cancaonova.com

Amados irmãos, a liturgia hoje nos ensina um caminho de desapego, desprendimento e mostra no Evangelho homens que eram apegados ao dinheiro. Fico pensando se nesse acampamento existem pessoas apegadas a coisas que passam, dinheiro.

A gente vai encontrando pessoas apegadas a coisas, mas eu queria trazer a realidade daqueles que são apegados a pessoas. Mas um apego doentio, porque nos aprisiona e somos impedidos de dar os passos que a vida nos pede. Chega uma hora que precisamos confiar os que amamos nas mãos Daquele que nos ama verdadeiramente.

Nós não podemos ter apegos. Quando nossa vida está resolvida, isso sinaliza que estamos livres. Falamos muito de pessoas que já estão na eternidade, mas hoje eu preciso falar daqueles que estão com seus familiares, ou com pessoas que amam e que caminham para a morte.

Existem pessoas tão apegadas que querem uma pessoa ao seu lado, ainda que essa pessoa esteja sofrendo muito com uma doença. Ainda diz que é por amor. Será que isso não é apego, egoísmo? Você pode dizer assim: mas é porque ele não passou por isso.

Há poucos anos recebi uma notícia, através da minha irmã, solicitando minha ajuda. Percebi que as coisas não estavam bem. Foi quando ela disse que minha mãe fez um exame e apontou uma lesão. Falaram pra minha irmã procurar um centro maior, pois elas moram no interior de Minas Gerais.
Foi um choque. Mas a gente precisa se manter firme, em pé, com palavras de esperança. Minhas irmãs perguntaram: o que vamos fazer? A resposta foi: “nós vamos viver. Viver esse tempo de doença, mas sobretudo, viver com ela, dar significado a cada instante”.

Lembro-me como se fosse hoje, de mamãe internada, me dizendo: Rafael, se não tiver jeito, eu não quero me tratar. Eu respondi: “quem sabe se tem jeito é só Deus. E se esse for o jeito de Deus? O jeito de Deus nos tocar?”

Leia mais:

Veja também:
::Cura do medo da morte
::Cura dos traumas das perdas pela morte
:: O amor é mais forte que a morte

Foi o ano da JMJ, e eu disse que tinha que ir. Ela disse: você tinha não, você vai. E eu fui viver a minha vida de missionário.

Foi quando, um dia, tive que voltar pra Belo Horizonte – MG, já que atualmente moro em Anápolis – GO, e mamãe estava tendo uma hemorragia. Eu ali, do lado dela, tive que ajudar. Quando a dor passou, ela disse: você chegou há muito tempo e ainda não me abraçou. Ali eu vivi momentos muito sublimes da minha vida.

No quarto de minha mãe eu celebrava a Eucaristia. E aquele pequeno quarto se tornava um grande santuário. Deus ali estava.Mamãe recebeu a Sagrada Comunhão até o último dia que ela pode. Ali nós vivíamos intensamente cada momento, cada instante. Quando parece que vai chegando a hora, parece que vamos nos reconciliando. Deus vai nos dando essa graça.Precisamos ser como São Paulo, aprender a viver todas as situações da nossa vida, inclusive quando a morte bate à nossa porta.

Quantas pessoas chegaram e me perguntaram: você não está revoltado? Você é um padre, deu a sua vida pra Ele. Por que eu iria me revoltar, se Ele estava ali comigo em todos os momentos, mesmo no sofrimento?

Por isso eu te digo: nós não podemos ter apegos na nossa vida. Nem às coisas, nem às pessoas. Já que as pessoas são de Deus, devem voltar para Ele. E o Pai atrai aqueles que ama. O amor de Deus, mesmo que não compreendamos, chega perto de nós.

"Nós não podemos ter apegos. Quando nossa vida está resolvida, isso sinaliza que estamos livres." (Padre Rafael Ligeiro) Foto: Regiane Calixto/cancaonova.com

“Nós não podemos ter apegos. Quando nossa vida está resolvida, isso sinaliza que estamos livres.” (Padre Rafael Ligeiro) Foto: Regiane Calixto/cancaonova.com

Nos últimos dias, eu conversando com minhas irmãs, falando sobre nossas angústias, perguntei para minha mãe: você tem algo para me dizer? Ela me respondeu: não filho, você é feliz…
Quando mamãe dormia, eu rezava e dizia: a hora que a senhora quiser ir, vá. Pois não sou eu, nem ninguém que vai impedi-la quando Deus a chamar.

Minha irmã mais velha teve um tempo que começou a desesperar e perguntou: o que vou fazer da minha vida? Eu disse: você vai continuar vivendo, continuar sendo mãe, esposa, filha, sendo você. Também não sei como será sem a mamãe, pois assim como você, eu também a tenho. Teremos que aprender a viver sem ela.

Um dia, eu olhei para o meu pai e disse: “Papai, tá chegando a hora da minha mãe. Você já disse que a ama? Já se reconciliou se existe algo pra isso”? Ele disse que não, então eu o deixei sozinho para ele viver isso.

Depois de um tempo ele saiu e me disse: eu fiz aquilo que você me disse. Eu disse pra ele: o senhor é o homem mais corajoso que eu já conheci. Foram 45 anos de história. Uma vida inteira juntos.

E foi num sábado como esse. Às 18h, na hora do Angelus e na terceira Ave Maria do Angelus, o coração da mamãe parou. Foi o altar mais difícil que eu celebrei: diante do corpo da mamãe. A missa mais difícil que eu celebrei até hoje.

Uma vez, quando eu era ainda seminarista, uma senhora bem simples me disse uma coisa que eu pude fazer. Ela me disse que quando eu fosse ordenado, eu iria amarrar minha mão com uma faixa. E me disse: Quando sua mãe morrer, você vai colocar a sua faixa de padre nas mãos dela, porque quando sua mãe chegar no céu, Nossa Senhora vai dizer: pode entrar, pois a senhora é mãe de um sacerdote do meu filho.

São Paulo hoje nos dá um direcionamento: Eu tudo posso naquele que me dá forças. Às vezes você pode, assim como eu, se sentir sem forças, desprovido. Era nessas horas que o Senhor vinha em meu auxílio e me dava forças.

Nós estamos num lugar muito propício: estamos em um Santuário e não qualquer Santuário, mas no Santuário do Pai das Misericórdias. Precisamos hoje, neste santuário, entregar nas mãos do Pai das Misericórdias.

Precisamos viver, sim, o luto. Mas precisamos ver quanto tempo é esse luto. Esse luto não pode durar muito tempo. Pois aí vai passar de luto para uma doença emocional. Viva o luto, não deixe de chorar, mas continue, siga.

Reze agora, nesse momento e diga que você quer confiar, entregar nas mãos do Senhor as pessoas que já estão na eternidade. Diga que, talvez, você não possa, mas que Ele pode tudo.

Depois que enterramos a mamãe, o momento mais difícil foi o de voltar para casa. Sempre pensamos: o que vamos fazer com as memórias? Guardá-las onde elas devem estar: no coração.
Voltar para casa é um desafio. Quando eu estava subindo as escadas da minha casa, eu disse pra mim mesmo: o que eu vou fazer? Eu tomei um banho e fui para a cozinha. Era hora do almoço e eu não me lembrava quando eu tinha feito uma refeição.

Fiz uma lasanha, forrei a mesa e a mamãe tinha uns forros prediletos. Foi um desses que eu peguei. E quando eu coloquei a mesa, dentro de mim Deus dizia: se vocês não se sentarem agora como família, nunca mais vocês vão se sentar assim. Está faltando alguém? Está. A pessoa que sempre fazia isso, a minha mãe.

Nos reunimos e começamos a conversar. Papai me disse: nessa mesa está faltando flores, sua mãe nunca deixou faltar uma flor na mesa.

Depois, minhas irmãs perguntaram: como vamos tirar as coisas da mamãe do guarda-roupa? E fomos tirar. Porque não podemos ter esses apegos. Ela nunca mais iria usar suas roupas. Fizemos uma doação de suas roupas para quem precisava.

Tiramos as roupas do guarda-roupa, mas não tiramos mamãe de onde ela precisa estar: dentro do coração. É aqui que ela precisa ficar.

A primeira vez que eu fui a África, no país de Guiné-Bissau, fui visitar um hospital. Vi uma criança nascendo no chão, bem sujo. A médica me deu a criança no colo, pois precisava esquentar e não tinha incubadora. Para eles era só mais uma criança que não resistiu. Mas Deus disse pra mim que eu iria encontrar muitas pessoas como aquelas crianças, que talvez não tinham mais esperança de viver, mas, pela vontade de Deus, através do meu ministério, elas iriam viver.

Transcrição e adaptação: Fernanda Zapparoli

Assista essa pregação pelo Canção Nova Play

↑ topo